A Carta da República de 1988 trouxe em seu texto legal, no Capitulo VI, disciplina destinada ao meio ambiente, o qual é inaugurado no artigo 225.
A cabeça do artigo 225 vem assim disposto:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações
Trata-se de direito fundamental de 3ª dimensão, direito metaindividual a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A leitura do texto se detrai viés antropocêntrico do constituinte originário, o qual não se coaduna com a interpretação do restante do dispositivo constitucional, com se buscará demonstrar.
A leitura que se faz da disposição constitucional é em contrário ao antropocentrismo, o qual está em interpretar o artigo 225 sobre o viés biocêntrico, em que todos são todos os seres vivos e, presentes e futuras gerações, se tratam de presente e futura geração de todas as espécies, não somente a humana.
A razão está no fato de que todos os seres vivos, a igualdade do animal humano, ocupam o mesmo “espaço” devendo viver em harmonia entre si para a manutenção de suas existências dignas, cabendo ao animal humano o dever, se não legal, moral e ético de cuidado em relação aos animais não humanos, o que fez com que a Carta de 1988 tenha previsto o dever de diligência e proteção da fauna e flora para a existência e manutenção do meio ambiente equilibrado com vedação a crueldade animal.
Neste sentido a interpretação que se mostra coerente, no sentir, do Texto Bíblico, Genesis, raiz do antropocentrismo, em que Deus cria o Homem a sua imagem e semelhança e lhe outorga o domínio dos mares, terra, animais e flora, longe de ser um cheque em branco para usar como instrumento da mera satisfação dos seus interesses se desimportando com as consequências dos seus atos, mas sim o dever de cuidado, diligencia, vigilância em relação aquilo que Deus lhe outorgou, razão pela qual a Vida, seja do animal humano seja do animal não humano é a essência de tudo, o que leva ao biocentrismo, refutando-se o antropocentrismo (historicamente criticado por Copérnico, Giordano Bruno, Galileu Galilei, Charles Darwin e, na atualidade, por Peter Singer e Tom Regan).
Ultrapassada em brevíssimas linhas a questão acima, o foco de interesse é o texto do parágrafo 1º, inciso VII do artigo 225, assim previsto:
Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade
Claramente há o que se denomina de dicotomia constitucional quando o texto impõe como dever do Poder Público (e de todos) em proteger a fauna e a flora de práticas nocivas tendo como fim a manutenção da função ecológica, ou seja, a proteção do animal visa a que não haja desequilíbrio ambiental (1ª parte do texto).
Em seguida prescreve o dever do Poder Público (e de todos) a não submeter os animais à crueldade. Aqui a proteção não visa à manutenção da função ecológica ou o equilíbrio ambiental, mas sim o animal de per si (2ª parte do texto).
O texto constitucional nitidamente visa proteger o animal como indivíduo, desimportando qualquer função que possa exercer para o equilíbrio do meio ambiente ou a sua função ecológica, que é reflexo ao impedir ato de crueldade.
Neste passo, quando o constituinte elege o animal como elemento de proteção do Estado e de todos sem se importar com a sua função ecológica, pois já é visto como objeto de proteção na primeira parte do texto do inciso VII, passando a valorar juridicamente o animal como elemento que merece consideração por si mesmo, logo, considera o animal não humano como dotado de valor moral próprio, independentemente de qualquer relação com o meio ambiente ou com a sua função ecológica como espécie, encarta no reconhecimento do animal como sujeito de direito.
A vedação a crueldade, por decorrência lógica, reconhece a existência da dignidade animal, o que se evidencia no momento em que o constituinte elege a vida, a integridade física e psicológica como bem jurídico objeto de proteção, consequência da violência que visa obstar, o qual já prestara valor ao bem jurídico como elemento fundante da dignidade na senciência, o que sobreveio cientificamente com a Declaração de Cambridge em 2012.
Por consequência da admissão do texto legal em reconhecer a existência de dignidade animal não há como furtar à admissão de direito fundamental animal a existência digna, direito à vida, direito a integridade física e psicológica com arcabolso legal de proteção animal, sem o qual é colocado em cheque o comando constitucional da regra da proibição da crueldade (mesmo sendo norma constitucional de eficácia plena, que independe de lei infraconstitucional para vigir a ordem).
O texto constitucional assenta a existência de dignidade animal, que se trata da fundamentalidade material de direito fundamental animal lastreada na senciência.
Se reconhecido o animal não humano como dotado de dignidade não há outro caminho senão o de reconhecer que titulariza direitos, os quais podem ser exercícios em juízo por seus tutores, guardiões, ONG’s, por exemplo, que lhe representam, sendo os animais não humanos o destinatário da tutela jurisdicional.
Assenta-se a afirmativa com noticia proveniente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que, em recurso de agravo de instrumento[1], teve a oportunidade de enfrentar esta questão, que de forma unanime reconheceu o direito de os animais comporem o processo como parte.
RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS. DECISÃO QUE JULGOU EXTINTA A AÇÃO, SEM RESOLUÇÃO DE MÉRITO, EM RELAÇÃO AOS CÃES RAMBO E SPIKE, AO FUNDAMENTO DE QUE ESTES NÃO DETÊM CAPACIDADE PARA FIGURAREM NO POLO ATIVO DA DEMANDA. PLEITO DE MANUTENÇÃO DOS LITISCONSORTES NO POLO ATIVO DA AÇÃO. ACOLHIDO. ANIMAIS QUE, PELA NATUREZA DE SERES SENCIANTES, OSTENTAM CAPACIDADE DE SER PARTE (PERSONALIDADE JUDICIÁRIA). INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS 5º, XXXV, E 225, § 1º, VII, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, C/C ART. 2º, §3º, DO DECRETO-LEI Nº 24.645/1934. PRECEDENTES DO DIREITO COMPARADO (ARGENTINA E COLÔMBIA). DECISÕES NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO RECONHECENDO A POSSIBILIDADE DE OS ANIMAIS CONSTAREM NO POLO ATIVO DAS DEMANDAS, DESDE QUE DEVIDAMENTE REPRESENTADOS. VIGÊNCIA DO DECRETO-LEI Nº 24.645/1934. APLICABILIDADE RECENTE DAS DISPOSIÇÕES PREVISTAS NO REFERIDO DECRETO PELOS TRIBUNAIS SUPERIORES (STJ E STF). DECISÃO REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
Assim, que animal tem direitos e não se confunde com a noção de meio ambiente.
Autor: Dr. Alexandre Giordani
OAB/RS 45.460
[1] Agravo de Instrumento n° 0059204-56.2020.8.16.0000
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