Somente o ser humano, leia-se, animal humano é dotado de dignidade?
Somente o animal humano merece consideração, leia-se, detentor de valor moral?
Sem perpassarmos por estudo de natureza filosófica e ética sobre o tema, que merecem aprofundamento, cujo presente pensamento lançado não é campo para tal desiderato, lastreio meu posicionamento afirmativo sobre dois pontos que julgo basilares.
Ponto 1.
Declaração de Cambridge.
No dia 07 de julho de 2012, um grupo internacional de neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reuniu-se na Universidade de Cambridge, Reino Unido, para reavaliar os substratos neurobiológicos da experiência consciente e comportamentos relacionados em animais humanos e não humanos.
Citamos a conclusão do estudo cientifico:
"A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos".
Simplificando a conclusão é possível afirmar que animais não humanos, vertebrados e invertebrados (polvos), são dotados de senciência e consciência e, portanto, capacidade de sentir dor, prazer, angústia, felicidade e de compreensão, sem adentrarmos em pormenores relacionados ao estado de consciência animal.
Ponto 2.
Constituição Federal Brasileira.
A Carta da República de 1988 trouxe em seu texto legal, no Capitulo VI, disciplina destinada ao meio ambiente, o qual é inaugurado no artigo 225.
A cabeça do artigo 225 vem assim disposto:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações
Trata-se de direito fundamental de 3ª dimensão, direito metaindividual a um meio ambiente ecologicamente equilibrado (com viés antropocêntrico?).
A leitura que se faz da disposição constitucional é em contrário ao antropocentrismo, o qual está em interpretar o artigo 225 sobre o viés biocêntrico, em que todos são todos os seres vivos e, presentes e futuras gerações, se tratam de presente e futura geração de todas as espécies, não somente a humana.
A razão esta no fato de que todos os seres vivos, a igualdade do animal humano, ocupam o mesmo “espaço” devendo viver em harmonia entre si para a manutenção de suas existências dignas, cabendo ao animal humano o dever, se não legal, moral e ético de cuidado em relação aos animais não humanos, o que fez com que a Carta de 1988 tenha previsto o dever de diligência e proteção da fauna e flora para a existência e manutenção do meio ambiente equilibrado com vedação a crueldade animal.
Ultrapassada em brevíssimas linhas a questão acima, o foco de interesse é o texto do paragrafo 1º, inciso VII do artigo 225, assim previsto:
Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade
Claramente há o que se denomina de dicotomia constitucional quando o texto impõe como dever do Poder Público (e de todos) em proteger a fauna e a flora de práticas nocivas tendo como fim a manutenção da função ecológica, ou seja, a proteção do animal visa a que não haja desequilíbrio ambiental (1ª parte do texto).
Em seguida prescreve o dever do Poder Público (e de todos) a não submeter os animais à crueldade. Aqui a proteção não visa à manutenção da função ecológica ou o equilíbrio ambiental, mas sim o animal de per si (2ª parte do texto).
O texto constitucional nitidamente visa proteger o animal como indivíduo, desimportando qualquer função que possa exercer para o equilíbrio do meio ambiente ou a sua função ecológica, que é reflexo ao impedir ato de crueldade.
Neste passo, quando o constituinte elege o animal como elemento de proteção do Estado e de todos sem se importar com a sua função ecológica, pois já é visto como objeto de proteção na primeira parte do texto do inciso VII, passando a valorar juridicamente o animal como elemento que merece consideração por si mesmo, logo, considera o animal não humano como dotado de valor moral próprio, independente de qualquer relação com o meio ambiente ou com a sua função ecológica como espécie.
A dignidade animal se trata do reconhecimento de que o animal não humano é dotado de valor moral, de valor próprio ou, ainda, percebe que o animal vale por si mesmo, o que se evidencia no momento em que o constituinte elege a vida, a integridade física e psicológica como bem jurídico objeto de proteção, consequência da violência que visa obstar, o qual já prestara valor ao bem jurídico como elemento fundante da dignidade na senciência, o que sobreveio cientificamente com a Declaração de Cambridge.
Por consequência da admissão do texto legal em reconhecer a existência de dignidade animal não há como furtar à admissão de direito fundamental animal a existência digna, direito a vida, direito a integridade física e psicológica com arcabolso legal de proteção animal, sem o qual é colocado em cheque o comando constitucional da regra da proibição da crueldade (mesmo sendo norma constitucional de eficácia plena).
Em observância a regra da proibição da crueldade e ao principio da dignidade animal sobreveio em 1998 a Lei de nº 9.605, Lei dos Crimes Ambientais, que no seu artigo 32 tipifica como crime praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
O preceito do tipo penal do artigo 32 recepciona o princípio da universalidade decorrente do texto constitucional (inciso VII do art. 225 CF), haja vista se mostrar antiespecista ao promover a tutela de todos os animais sem distinção, porem não é livre de crítica à lei infraconstitucional por valorar a morte de cão e gato com sanção penal de reclusão de 02 a 05 anos, multa e perda da guarda, quando as demais espécies de animais a pena é de 03 meses a 01 ano, e multa.
O legislador aderiu ao especismo eletista, ou seja, elegeu valorar com maior consideração uma espécie animal em desfavor das demais espécies, o que viola o artigo 225, § 1º, inciso VII da CF, posto que, o texto constitucional não diferencia qual animal deva ser objeto de proteção a ato cruel ou com maior graduação de censura ao agente violador. A interpretação do precitado inciso VII emerge o principio da universalidade animal (o texto não elege espécie com maior ou menor valor moral e maior ou menor grau de proteção).
Com a máxima vênia, não pode o legislador infraconstitucional eleger qual ou quais animais merece maior proteção com a agravação de pena decorrente da mesma conduta antijurídica praticada contra animal não humano.
Não há autorização legal para diferenciar o sancionamento penal para ato de crueldade a pet e ato de crueldade a não pet quando o comando do inciso VII não diferencia o bem jurídico tutelado, qual seja: dignidade animal.
A crítica permanece ao verificarmos que a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XLI determina que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
A tipificação de crime a prática de ato cruel cumpre com a ordem constitucional de criminalização de comportamento atentatório a direito fundamental, no entanto, a interpretação do artigo 5º, inciso XLI e o artigo 225, § 1º, inciso VII horizontaliza o campo de incidência, ou seja, não discrimina a espécie, exigindo reprimenda adequada para punir discriminação a direito fundamental a existência digna independente da espécie animal.
O texto constitucional assenta a existência de dignidade animal, que se trata da fundamentalidade material de direito fundamental animal lastreada na senciência.
É demasiadamente tardio a revisão da legislação estadual e municipal de diversos entes federativos que se omitem e fecham os olhos a prática diuturna de maus tratos decorrente da tração animal, por exemplo.
Cabe a todos, como consta do comando do artigo 225, paragrafo 1º da Constituição Federal, assegurar a efetividade a meio ambiente equilibrado preservando a função ecológica e livre de atos que submetam amimais a crueldade.
Que não incorremos em omissão, pois a crueldade com a violação da dignidade animal não espera.
Autor (a): Dr. Alexandre Giordani - OAB/RS 45.460
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